15 abril 2014

O Guardião - Olhar para o lado



(...)
- Foi um bom passeio Guardião.
- Sim Senhorita Nina, estamos nos tornando esportista de primeira. Disse Xavier entre risos.
- Ah, veja a hora. É tão cedo ainda, vamos andar devagar até a praça e tomar um sorvete.
- Sim.
Pouco tempo depois já estavam na praça.
- Veja Xavier, aquela Senhora. Está aqui todos os dias a pedir donativos. Diz que trabalha em uma instituição que cuida de jovens em risco social.
- O que acha você disso? – Perguntou ele.
- A princípio nada, por isso um dia lhe perguntei o seu nome, enquanto lhe dava alguma pequena contribuição.
- Ah, com sei que você não dá um ponto sem nó, posso apostar que empreendeu alguma investigação a respeito da tal moça.
- Na mosca, seu bobo, sim claro. Lançamos pequenas iscas caso não saibamos se no mar tem peixe. Ao passo que arriscamos mais se sabemos que o resultado vale a pena.
- Lembro-me desta frase.
- Sim, foi você que citou certa vez. A questão que pede resposta é: de fato não faço ideia se você sabe pescar, mas de qualquer maneira descobri que a moça falava a verdade. Encontrei a tal instituição e seu nome estava entre os fundadores.
- A instituição por sua vez deve fazer um trabalho sério, imagino.
- Sim, para meu alívio ao pensar em minhas moedinhas doadas, sim.
- Infelizmente vim sem minha carteira, fiquei entusiasmado com a possibilidade. E...
- Shi... shi... olha lá Xavier, a pobrezinha sendo tratada com grosseria por mais um transeunte, vida dura... não?
- Se tivéssemos algo para dar a ela, talvez a consolasse, além de dar alguma motivação para fazê-la voltar amanha.
- Acho que no caso, o fato de não podermos ajudá-la é uma incapacidade nossa. Mas e quem pode e não ajuda, o que é?
- A mesma coisa.
- Como é?
- Sim, também uma incapacidade. A incapacidade de olhar para o lado.
- Venha, você me deu uma ideia...
- O quê?
- Vamos lhe doar as moedinhas do sorvete, e um pouco da nossa atenção, saber de sua história.
- Mais uma vez você ocupando um capítulo inteiro de um livro, senhorita Nina. Sim vamos, estou logo atrás de você.

- Bobo como sempre Xavier. Vamos logo, quero tentar pegar o semblante dela ainda não tão caído...

Leia também mais sobre Nina e Xavier em O Guardião, a primeira história deles em 'Um lugar para estar'. Obrigado, caro leitor!



08 abril 2014

Parede de fotos



Enfim em casa, pensava Humberto. Estava cansado, consumido pelo dia. Entretanto ao entrar, não acreditava no que via: o melhor amigo sentado cabisbaixo ao lado do telefone. Era a mesma posição em que o deixou de manha, ao se despedir.
- Cara, já estou preocupado com você, a espera de um telefonema que nunca toca.
Nuno, que é como se chama o amigo de Humberto, levantou-se e foi tomar banho, com alguém em casa não havia perigo de se perder uma ligação, ponderava entre si.
Humberto estava realmente começando a ficar aflito pelo amigo, enquanto refletia, voltou-se para uma das paredes da sala onde haviam vários quadros com as fotografias premiadas de Nuno, que era fotografo. Seu trabalho é baseado principalmente em expressões faciais, sempre gostou de captar o semblante de uma pessoa ao satisfazer-se com algo, além de tantas outras formas de expressões. Era espantoso, ponderava Humberto, um jovem tão bem sucedido financeira e profissionalmente, passar os dias a espera de um telefonema.
Nuno lhe contou que certa vez passou uma semana com um modelo. Eram os primeiros tempos como profissional. A sessão de fotos durou tanto assim por um simples fato: o modelo não sabia do que mais gostava na vida, sempre foi muito pobre, pouco havia experimentado entre variações de cores, sabores e aromas. Foi uma sessão rica em expressões realizadoras. De balas de café a cappuccinos, cheiro do hortifrúti local à perfumes caros. Era a expressão de uma criança recém-nascida descobrindo o mundo no rosto de um adulto de sensibilidade imatura.
Realmente, Nuno sempre foi paciente. Para a expressão facial perfeita, investia dinheiro e tempo. Ele sempre esteve à espera de algo como agora. Lá estava ele, tinha acabado de estender a toalha molhada, estava de volta ao mesmo lugar ao lado do telefone.
- Sabe Nuno, estava aqui me lembrando da vez em que você esperou quase uma semana por uma expressão facial do seu agrado.
Nuno sorriu, sem encarar Humberto, com um daqueles sorrisos particular de uma glória sem aplausos. Motivado pela sua grande paixão, expressões faciais, ele finalmente disse algo:
- Tive uma grande sorte meu amigo, encontrar um belo modelo tão pueril em seus gestos.
- Parece que você lhe apresentou um novo mundo.
- Novas possibilidades eu diria, o resto foi com ele.
- Quem sabe a vida deva ser assim.
- Assim?
- Sim. Fazer nossa parte e esperar do outro apenas o que ele pode oferecer.
- É, quem sabe...

No dia seguinte. Humberto chegou a casa no mesmo horário e não encontrou Nuno. Havia um recado na geladeira que dizia:

Humberto meu amigo,

resolvi aceitar uma proposta de trabalho, viajo hoje mesmo. Quanto àquela ligação, haha... eu mesmo liguei e disse que não mais esperaria, creio que foi uma maneira de dar um ponto final. Não estou completamente feliz, mas bem aliviado. Te ligarei logo que puder.
Grande abraço. Nuno.

O telefone desta vez não demorou muito a tocar, os amigos se falaram por cerca de uma hora. Nuno parecia mais resignado e disposto, para alegria de Humberto. Combinaram uma programação para o próximo feriado, se despediram.
Ao desligar, Humberto notou uma nova foto em um dos quadros. Era do próprio Nuno sorrindo ao olhar em suas mãos uma das fotos de seu trabalho. Parecia estar particularmente satisfeita com ela.
-É. Começou a falar sozinho. – Parece que dentre todos os sorrisos, as considerações, os elogios, telefonemas, bens e afins; a felicidade só depende de nós, hoje. Não do amor que vai chegar, do sonho que vai se realizar ou da pessoa que vamos nos tornar.
O telefone tocou novamente. Humberto atendeu:
-Alo?
-Alo Humberto, chama o Nuno, por favor.
Tarde demais, pensava Humberto.

- Ele está viajando...